Uma Vocação Desperdiçada


Uma Vocação Desperdiçada

Nas cartas que Otto Lara Resende enviou a Fernando Sabino ao longo da vida (O Rio é tão Longe: cartas a Fernando Sabino. Introdução e notas de Humberto Werneck. São Paulo: Companhia das Letras, 2011) , fica claro que o autor do romance “O Braço Direito” foi um ficcionista genuíno, mas que se desviou de sua vocação.

De fato, romancista e contista de alto calibre, Otto Lara Resende escreveu em vida, no entanto, poucas obras (cinco livros de contos e um romance). Isto se deve — e esta epistolografia atesta-o — tanto a seu perfeccionismo quanto à sua dispersão em vários afazeres profissionais.

No primeiro caso, a busca da obra perfeita, bem-acabada, levava-o a retardar a publicação de material, a ponto de Fernando Sabino aconselhá-lo: “é um livro, não tem que ser o livro, diabo!”

No segundo caso, o excesso de compromissos profissionais assumidos deixava-lhe pouco tempo disponível para o individualismo solitário da carreira literária. Afinal, a criação literária é antes de tudo um ato individual, isolado; a contribuição de um escritor para a sociedade só é possível quando ele se isola dessa mesma sociedade — numa contradição mais aparente que real.

Como o próprio Otto Lara Resende reconhecia, ele vivia mais para os outros que para si. “(…) Vivo crucificado em mil probleminhas alheios, causas chatas, aquela minha vocação de ser devorado pelos outros”, escrevia de Lisboa, a 15 de março de 1969 (pg.308). Ele chega a celebrar sua recusa em emprestar dinheiro a alguém, mas confessa que isso lhe fez dormir mal e ter remorsos. Em carta de 22 de maio de 1969, confessava: “É o velho problema: não querendo (ou não sabendo) dizer não, querendo satisfazer ao interlocutor, sujeito à pressão, caio numa aparente perplexidade e hesitação.”(pág.331).

Essa dificuldade de dizer “não” fez com que assumisse quantidade impressionante de atividades (jornalista, diretor de banco, adido cultural, procurador, professor, advogado), que relegaram a literatura às horas mortas do cansaço e da sonolência.

Otto Lara Resende parecia ter noção dessa vida desperdiçada, embora tentasse disfarçar essa consciência por meio do bom humor. “Meu Cemitério Literário!”, escrevia a 11 de junho de 1969. “É maior do qualquer cemitério de automóveis da Califórnia” (pág. 354). As cartas são cheias de comentários sobre projetos abandonados, procrastinação, adiamentos, num escritor em quem o conforto material advindo dos cargos trabalhou mais contra a vocação literária que a favor — armadilha do acomodamento burguês contra a qual Mário de Andrade alertara Fernando Sabino, em outra correspondência, mais famosa.

Curiosamente, a mesma epistolografia que desvela os motivos pelos quais Otto Lara não se tornou o ficcionista que almejava ser acaba por situá-lo como escritor de peso. Escritas em um português que dialoga com a linguagem falada sem descuidar da gramática e das nuances da língua culta, as cartas reunidas neste livro comprovam o que os amigos de Otto diziam dele: que seu maior talento era a epistolografia. O perfeccionismo do escritor, claro, levou-0 a rejeitar a proposta de Fernando Sabino, ainda nos 1960, de publicar sua correspondência. Décadas depois, o projeto de edição preparado por Sabino acabou publicado pela Companhia das Letras.

Se em vida o profissional Otto Lara Resende venceu o escritor, essa correspondência póstuma não deixa de ser, assim, pequena vingança do escritor contra o profissional. Escritores têm este privilégio, o de continuarem a luta mesmo depois de mortos — ainda que se trate, como no caso aqui, de um conflito consigo mesmo: a faceta criativa versus a profissional, no interior de um homem cuja disponibilidade excessiva aos outros acabou por soterrar a ânsia individual da criação literária.